terça-feira, 20 de maio de 2008

- Mundo louco - disse outra vez a mulher, como se o arremedasse, como se o traduzisse.

Eu a ouvia através da parede. Imaginei sua boca se movendo diante do bafio de gelo e fermentação da geladeira ou da cortina de varetas crestadas que devia estar tesa entre a tarde e o quarto, ensombrecendo a desordem dos móveis recém-chegados. Escutei, distraído, as frases descontínuas da mulher, sem acreditar no que dizia.

Enquanto sua voz, seus passos, seu robe e os braços, que eu imaginava robustos, deslizavam da cozinha para o quarto, um homem repetia monossílabos, sem abandonar-se inteiramente à brincadeira. O calor que a mulher ia gretando então se reagrupava, suprimia as fissuras e se apoiava, denso, em todos os aposentos, nos vãos das escadarias, nos desvãos do edifício.

(trechos iniciais de A Vida Breve, do uruguaio Juan Carlos Onetti)

sábado, 10 de maio de 2008

uísque

Sólido.
Entre o ar e as águas, zero graus celsius.
Em meu copo,
um pedaço do mundo bóia.
Línguas e lábios desfrutam de contato infinito.

Líquido.
Madeira destilada.
Corre veloz, cobre gargantas.
Combinam corpos, palavras.
Gargalham risadas.

Tecido fino,
quase ausente.
Preto pano tracejado em branco.
Olho, meu corpo sente.
Que tempo é este que me espelha tanto?

Nada mais ouço.
Nada mais vejo.
Volumes e espaços transmutam-se uno.
Enxergo plena essência,
derradeira adolescência,
de meus tantos poucos anos.

(eu, em algum ponto de 2006)

quinta-feira, 8 de maio de 2008

Não sejas o de hoje.
Não suspires por ontens...
não queiras ser o de amanhã.
Faça-te sem limites no tempo.
Vê a tua vida em todas as origens.
Em todas as existências.
Em todas as mortes.
E sabes que serás assim para sempre.
Não queiras marcar a tua passagem.

É a passagem que se continua.
É a tua eternidade.
És tu.

Cecília Meirelles

quarta-feira, 7 de maio de 2008

Do lugar donde lentamente há muito esquecido,
A passada experiência revela-se em nós,
Perfeitamente domada, suave e mesurável,
E realizada no intangível:
Aí começa o verbo, tal como o concebemos,
E seu significado serenamente passa além de nós -
Pois a mente que nos mantém solitários, quer
Estar certa de nos poder unir novamente

Rainer Maria Rilke

domingo, 4 de maio de 2008

Hoje estou cônscio da minha linhagem. Não tenho necessidade de consultar meu horóscopo ou minha carta genealógica. Nada sei do que está escrito nas estrelas ou em meu sangue. Sei que provenho dos fundadores mitológicos da raça. O homem que leva a garrafa sagrada aos lábios, o criminoso que se ajoelha na praça do mercado, o inocente que descobre que todos os cadáveres fedem, o louco que dança com um raio na mão, o frade que ergue a saia para mijar sobre o mundo, o fanático que rebusca bibliotecas para encontar o verbo - todos esses estão fundidos em mim. Todos esses fazem minha confusão, meu êxtase... eu derramo o suco de uva na minha garganta e encontro nele sabedoria, mas minha sabedoria não nasce da uva, minha embriaguês nada deve ao vinho...

Henry Miller, em Trópico de Câncer

sexta-feira, 2 de maio de 2008

the cold again

"poplars shaken in the cold wind,
in a low, curtailed light,
the earth withdrawn into itself,
a few dull leaves on the birch;
a remote train passes,
conveying the coldness of iron,
and the station its icy winds
where you dropped off a friend,
and where the empty platform
is a whistling track
to the hidden stars"

Gilles Ortlieb, traduzido por Stephen Romer
"Eu caminharei para longe até que minhas pernas
Estejam imersas em flores ardentes
Pegarei o sol na minha boca
E saltarei no ar maduro, vivo
De olhos fechados
Para açoitar a escuridão
Nas curvas dormentes do meu corpo
Penetrarei com dedos de suave domínio
Com a castidade de gaivotas
Completarei o mistério da minha existência."

E.E Cummings